domingo, 10 de outubro de 2010

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terça-feira, 28 de setembro de 2010

Cultura e Ação Pública

O Globo
PRIMEIRO CADERNO - 21/09/2010, p.7. 
Cultura e ação pública

PAULO SÉRGIO DUARTE

Desde 1985, com a criação do Ministério da Cultura, há um problema na formulação das políticas públicas de cultura: fomos levados a um divórcio entre educação e cultura. O novo ministério serviu bem como balcão de atendimento às reivindicações das diversas corporações culturais, atende artistas e produtores e nos últimos oito anos ampliou essa assistência a um público que nunca teve acesso ao Estado. As leis de incentivo à cultura por meio da renúncia fiscal podem ser aperfeiçoadas, mas funcionaram. Entretanto, a questão crucial não foi enfrentada desde 1985: a participação da cultura na formulação das políticas públicas educacionais. 
E vou mais longe: a participação da cultura em projetos sociais, como os de urbanismo e habitação e os de alimentação. O fato é que a política cultural não pensa a nação fora do gueto das diversas corporações, algumas com lobistas profissionais. 
O forte investimento que o Brasil fizer em educação nas próximas décadas terá resultados lamentáveis se mantidos os paradigmas atuais. Só se pensa na capacitação técnico-científica e o problema não se resolve ao embutir nos currículos disciplinas artísticas como arte, música e dança. Isso é necessário, mas não suficiente. Trata-se de formar os professores das mais diversas disciplinas – matemática, ciências, línguas, história, geografia, educação física - com ênfase nos aspectos culturais que podem ser explorados em seus projetos didáticos. Os laboratórios de currículos das secretarias de educação têm que ser capacitados para isso. Quando existem, não estão preparados e isso deverá ser objeto de um investimento rigoroso. É todo um processo que se constitui num grande desafio para a política cultural das próximas décadas. O cidadão do mundo contemporâneo resolverá melhor suas dificuldades se junto com a especialização tiver uma percepção adequada da complexidade local e global, ou como se costumava dizer, em termos mais antigos, das particularidades e da totalidade. A formação de professores bem remunerados deverá ser a atenção primordial mas sem a dimensão cultural e a habilidade de tratá-la em diferentes disciplinas pouco adiantará para melhorar o que vem por aí. 
O caso da ausência da dimensão cultural na formulação dos projetos sociais aponta para as tragédias que estamos construindo. Tomemos o exemplo mais banal do urbanismo, da habitação e do saneamento. Encontrado um terreno plano, traça-se um projeto ortogonal de vielas ou ruas verticais e horizontais, que se entrecruzam, e lá são construídas habitações de arquitetura pífia. Para quem mora embaixo da ponte é um ganho enorme, mas levar o miserável a habitar um verdadeiro campo de concentração forma cidadania? Porque não pensar todos, literalmente todos os projetos de habitação popular, como locais aprazíveis, com desenho de ruas agradáveis, um projeto de paisagismo com arborização adequada e locais de lazer e equipamentos de saúde, de educação e cultura necessários para uma vida pobre mas digna dentro das novas exigências de sustentabilidade e respeito ao meio ambiente? O que se constrói hoje é uma indústria da depressão e da marginalização da população pobre, locais vulneráveis à violência e a toda forma de achaques, de traficantes, de milícias, de funcionários corruptos e de políticos demagogos. 
A redução de custos desses projetos, a médio prazo, custa muito mais caro a toda a sociedade.
E não esqueçamos que é tempo de a dimensão cultural entrar na política de alimentação. Pode parecer absurdo, mas depois do Fome Zero é importante pensar na qualidade da alimentação num processo dele educação alimentar das populações mais pobre e, de novo, a política cultural terá que encontrar um nicho para se meter nesse assunto: o que comem os brasileiros pobres. 
Esses são desafios para uma política cultural mais abrangente do que a que vem sendo executada há mais de duas décadas. Sem uma sinergia positiva entre os diversos ministérios e o Ministério da Cultura não sairemos dos limites atuais. E essa sinergia só se produzirá a partir da vontade expressa do futuro presidente da República, como plano permanente de governo. 

PAULO SERGIO DUARTE é professor e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O lugar instável das vozes periféricas. Ensaio seminal da indiana Gayatri Spivak discute a representação política e estética de segmentos marginalizados

O Globo. Caderno “Prosa & Verso”. 24/07/2010

Resenha de: Gayatri Spivak. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 133p.

Liv Sovik*

Do período entre meados de 1970 e meados de 1990, propício para a reflexão teórica na esteira dos movimentos de 68 e da crise do modelo capitalista do início dos 70, ainda são leituras obrigatórias para o pensamento sobre cultura textos de Foucault, Deleuze e Derrida; García Canclini, Martín Barbero; Edward Said, Stuart Hall, Paul Gilroy, Homi Bhabha, Andreas Huyssen e Fredric Jameson. A essa constelação de estrelas faltava, há algum tempo, a tradução ao português da indiana radicada nos Estados Unidos, Gayatri Spivak, e de seu texto seminal, Pode o subalterno falar?, que sai agora em livro “pocket” pela Editora UFMG. Publicado originalmente em 1988 com quarenta e poucas densas páginas em inglês, o texto foi então anunciado como “uma investigação da interseção da teoria da representação e da economia política do capitalismo global”, visando “uma compreensão das relações contemporâneas de poder e do papel do intelectual ocidental nelas”.

No mundo universitário brasileiro, o texto já é conhecido, mas não muito estudado por causa da barreira da língua. Circula sobretudo porque na pergunta do título ecoa o tema perene da representação política e estética de segmentos marginalizados. Em um país desigual como o Brasil, cuja vitalidade cultural é tão prontamente atribuída ao “povo”, esse povo intervém, ele fala através de suas representações políticas e estéticas? Quando a resposta da autora é resumida em um “não”, o que tem sido comum, na ausência de tradução, não se faz justiça à operação exploratória da pergunta e dos lugares de fala de atores envolvidos em respondê-la, nem à valorização, no final, de uma “intervenção prática” do subalterno, em lugar de um discurso legível para o intelectual. O “não” de Spivak é complexo e o texto é difícil de entender, pois ela lança mão de suas muitas leituras, cria, inclusive, uma insólita convivência de Marx e Althusser com a desconstrução e elabora verdades em nada unívocas. Mas o texto merece estudo paciente e aprofundado por quem se interessa pelas tensões inerentes à relação entre o pensamento e as causas dos “outros” ou quer uma nova (apesar dos 22 anos passados) perspectiva para o debate teórico sobre a questão do sujeito.

Em uma terra em que Michel Foucault e Gilles Deleuze muitas vezes são lidos como referenciais de verdade, não pode deixar de instigar a discussão que Spivak empreende sobre “Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze”, para ela uma “interação amigável entre dois filósofos ativistas da história porque desfaz a oposição entre a produção teórica da autoridade e a prática conversacional desprevenida, permitindo-nos vislumbrar a trilha da ideologia” (p.21). Spivak afirma que esses críticos do sujeito soberano fazem um “deslize verbal” quando falam do que “’realmente acontece’” ou da teoria como mais uma prática (uma “caixa de ferramentas”), pois obliteram o interesse e a dimensão econômica do poder, enfatizando a dimensão do desejo, e privilegiam as “micrologias” às custas de uma teoria de interesses e de ideologia. Acabam reinaugurando um Sujeito indivisível implicitamente europeu, afirma Spivak.

Isso pode soar golpe baixo contra os mestres da teoria francesa, afinal uma conversa não é uma amostra fiel da obra. Ou pode parecer uma operação ressentida, realizada desde a periferia indiana das origens de Spivak. Mas o texto não permite pegar a autora em flagrante dessa maneira, pois ela não só contesta a falta de questionamento sobre o lugar de fala ocidental, por Foucault e Deleuze, mas considera seus próprios interesses e defende, por render uma compreensão menos ingênua ou utópica, a desconstrução de Jacques Derrida, cuja obra Da gramatologia ela traduziu ao inglês. “Derrida não invoca que ‘se deixe o(s) outro(s) falar por si mesmo(s)’, mas, ao invés, faz um ‘apelo’ ou ‘chamado’ ao quase-outro (tout-autre em oposição a um outro autoconsolidado), para ‘tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós” (p.83).

Spivak ainda retoma Foucault para identificar a violência epistêmica não só com a redefinição da sanidade, no final do século 18 na Europa, mas com a subjugação do conhecimento e “a obliteração assimétrica do rastro desse Outro [colonial] em sua precária Subje-tividade” (p.47). Ao focar “a clínica, o asilo, a prisão, a universidade”, Foucault e Deleuze produziriam “uma tela alegórica que impede uma leitura das narrativas mais amplas do imperialismo” (p.76). A vantagem apresentada pela desconstrução de Derrida seria que ajuda a entender, dentro dos parâmetros da especificidade empírica dos discursos, “a mecânica da constituição do Outro” pelo Sujeito europeu (p.84).

A passagem mais memorável do texto está no final, quando Spivak encontra uma resolução para a pergunta do título e a seguinte: “O que a elite deve fazer para estar atenta à construção contínua do subalterno?” Spivak adota a recomendação de Derrida de “’tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós’” (p.83) e a “psicanálise selvagem” de Freud. Analisa o sati, a auto-imolação das viúvas (figuras femininas, portanto, duplamente “à sombra”, porque silenciadas também pelo patriarcado local), a partir de uma frase que resume a justificativa do projeto colonial na Índia: “homens brancos estão salvando mulheres de pele escura de homens de pele escura” (p.91).

No momento da primeira publicação de Pode o subalterno falar? talvez fosse necessário relembrar a viagem de Phileas Fogg no romance A volta do mundo em 80 dias, de Jules Verne, para verificar a centralidade, para justificar o projeto imperialista, da imagem do resgate das viúvas condenadas. Hoje, a figura se repete na propaganda de guerra norte-americana sobre o Iraque e o Afeganistão, passando pelo Irã, pois as mulheres de burca e véu são consideradas vítimas a serem resgatadas pela cultura ocidental. Mas Spivak não quer fazer denúncias ou propor modelos de correção. No final, coloca em cena uma voz delirante, na história de uma jovem lutadora pela independência indiana, que põe em cheque a resposta negativa à pergunta do título, enquanto retoma a dificuldade que a subalterna seja ouvida por nós.

Ler Pode o subalterno falar? lembra tempos em que a discussão teórica parecia muito reveladora e os grandes autores eram menos mestres, mais pensadores. Talvez a dificuldade e o proveito da leitura de Spivak, em um momento em que o subalterno parece estar falando por toda a mídia e parece falar por si, ajudem a ressuscitar a crítica à mediação do intelectual e das representações do popular.

*Professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de Aqui ninguém é branco (Aeroplano).